Sem química e com sabor
A Agricultura Orgânica se expandiu por volta de 1970 como um movimento questionador do modo convencional de produção, que utiliza insumos químicos para combater pragas e corrigir os nutrientes do solo. Apesar da alta produtividade, o uso excessivo de derivados do petróleo tem sido apontado como uma das causas mais importantes da degradação do solo, meio ambiente e aumento da agressividade de pragas.
Hoje, segundo a Rede Agroecologia, que veicula dados via Internet, na Europa e EUA os orgânicos têm obtido uma taxa de crescimento maior do que a agricultura convencional. A revista A Lavoura visitou um dos pioneiros da produção de alimentos orgânicos, o Sítio do Moinho, localizado nos arredores da cidade de Itaipava, no estado do Rio de Janeiro. Em princípio, querendo um meio de manter os custos de um sítio sob controle, aliado à escolha pessoal de um plantio sem aditivos químicos, Dick e Angela Thompson iniciaram uma horta em 1989 sem imaginar o quanto avançariam em termos empresariais e produtivos.
– Como aconteceu a entrada do Sítio do Moinho no mundo orgânico?
Dick Thompson – Trabalhei por mais de 30 anos no mercado financeiro do Rio de Janeiro. Eu era sócio de um banco de investimentos, e como a matriz se mudaria para São Paulo, saí da sociedade. Queríamos um sítio que pudesse gerar renda para se manter, mas nunca sonhamos com o que nos tornaríamos. Buscamos no princípio a consultoria de uma empresa especializada no setor rural, a AgroSuisse, que realizou um estudo de viabilidade econômica. O ramo agrícola nos foi indicado pela possibilidade e conveniência de fazer entregas no Rio de Janeiro. Contudo, desde o começo não quisemos usar agrotóxicos, por acharmos uma opção mais saudável. Começamos despretensiosamente o plantio, adaptando-nos à região, em 1989. Dois anos depois, fizemos nossa primeira entrega domiciliar de cestas de alimentos para pessoas conhecidas. Nossos colaboradores foram, em primeiro lugar, a técnica agrícola Maria Cláudia Teixeira Aroeira, hoje gerente geral do Sílio, da parte técnica da horta, e aos poucos formamos a equipe, aumentando com propaganda boca a boca, até que em agosto de 1997 houve a primeira entrega em supermercados. Ainda fazemos um trabalho bastante artesanal e minucioso, mas sempre tendo como prioridade a qualidade dos produtos. Partimos das verduras seladas à mão, sem logotipo ou embalagem impressa. Aos poucos fomos fazendo reformas, treinando funcionários, para alcançar padrões mais altos de higiene, acondicionamento, etc. Até 97 não havia sido implantada uma forma profissional e eficiente como a nossa de se chegar ao consumidor.
– Como vocês encararam uma mudança tão radical do setor financeiro para o agrícola?
Dick Thompson – No início fomos muito criticados por termos vindo do ramo financeiro. Havia uma visão desconfiada de que éramos “os capitalistas estranhos no ninho”. Nunca imaginei que viveria neste mundo da agricultura ou nesta filosofia de alimentação mais saudável, levando ao consumidor um produto mais nobre e diferenciado. Vivi 30 anos ouvindo sobre negociações na bolsa, mercado financeiro e câmbio e não tinha a menor idéia de como o ramo agrícola funcionava.
– Como um agricultor deixa de ser convencional e se torna orgânico?
Dick Thompson – Entrando num processo amplo que se chama conversão. Leva de uma três anos. Ele deixa de usar os insumos químicos e ocorre a adaptação ao novo sistema. Há algumas perdas, e não é permitido vender pelo preço de orgânico – um pouco mais elevado – enquanto a certificadora não der a liberação. Passa-se por várias inspeções, englobando aspectos como a qualidade, solo, meios de produção, pessoal, insumos utilizados, sistemas de colheita, empacotamento, entreoutros.
– Como funciona o processo de conversão e certificação?
Dick Thompson – A certificação segue regras bastante rígidas, para evitar fraude ou divergências de opinião e interpretação. Caso se queira fazer uma associação entre produtores, todos têm que estar certificados, pois há o perigo até de perda da certificação já obtida anteriormente. Há conferência de notas fiscais, relatórios, visitas de inspetores, testes de fornecedores, etc., gerando um custo pesado. No caso do Sítio do Moinho, começamos a plantar sem uso de defensivos químicos em 1989. Cerca de dois anos depois, fomos a Cachoeiro do Itapemirim, no estado do Espírito Santo, observar as hortas lá produzidas e técnicas aplicadas. Contudo, devido ao microclima daquela região ser bastante diferenciado da nossa, acabamos perdendo muitos produtos durante quase um ano. Quando chegamos aos supermercados, cerca de seis anos mais tarde, descobrimos que acertificação era necessária também para dar maior credibilidade ao produto. Um consultor foi chamado e promoveu alguns ajustes, mas nada drástico, pois já estávamos praticamente dentro dos padrões exigidos para produtos orgânicos. Em três meses conseguimos a certificação, seguindo aqueles passos e alguns outros.
– Quais são as certificadoras do Sítio do Moinho?
Dick Thompson – Existe o Instituto Biodinâmico de Desenvolvimento Rural (IBD), que é reconhecido na Europa, E.U.A. e Japão, sendo filiado à Federação Internacional de Movimentos e Agricultura Orgânica (IFOAM). Essa entidade concede a certificação, obrigatória para a comercialização. Há também a Associação de Produtores Biológicos do Estado do Rio de Janeiro (ABIO). Só que antes de chegarmos aos supermercados não tínhamos tais certificações, nossos compradores domiciliares acreditavam em nossos produtos.
– Como foi a entrada do Sítio do Moinho nas prateleiras dos supermercados?
Dick Thompson – Foi uma reviravolta pois, além de atendermos aos domicílios da região, passamos a fazer entregas de 200 unidades (conjunto padrão dos mesmos legumes e verduras) três dias por semana, na filial de Ipanema do supermercado Zona Sul, na cidade do Rio de Janeiro. Para se trabalhar com clientes domiciliares e supermercados não é necessária apenas qualidade, mas também variedade e volume de produção, dentro do critério de segurança dos orgânicos. O fornecimento dos produtos do Sítio do Moinho para os supermercados teve início com um contato da produtora agrícola Jovelina Fonseca, de Friburgo (RJ), com o diretor daquela filial do Zona Sul, Jaime Xavier. Foi ela que começou a entrega de orgânicos naquele
local, pois eles desejavam ser a primeira cadeia de supermercados a ofertar aquele tipo de protudo. Contudo, em pouco tempo a produtora constatou que não tinha estrutura para continuar o fornecimento, praticamente sozinha, e nos ofereceu a oportunidade. Pouco mais de um ano após, estávamos entregando nossos orgânicos seis vezes por semana e chegando a todas as filiais do Zona Sul, com entrega exclusiva de 1997 a 1999. Depois entramos em outras redes de supermercados e passamos a fornecer para algumas filiais do Extra,Pão de Açúcar e do Carrefour-Barra (RJ). Saltamos de 600 unidades por semana para cerca de 25 mil.
– Seus clientes domiciliares também recebem estas unidades padronizadas?
Dick Thompson – Não, pelo contrário. Em 12 anos de entregas procuramos satisfazer as necessidades de cada cliente. E oferecemos também novidades como café ou feijão, que ainda não produzimos no Sítio do Moinho. Os clientes domiciliares são o nosso “xodó”, um patrimônio que preservamos com carinho.
– Como vocês se adaptaram a esta mudança?
Angela Thompson – Fomos obrigados a realizar uma grande reestruturação, em termos empresariais e de produtividade, para atendermos ao crescimento da demanda. Aumentamos bastante nosso investimento, reformando e ampliando o galpão, com a compra de caixotes plásticos, e com a instalação de câmaras frias de despacho e recebimento umidificadas (5 a 8° C, com 96-98% de umidade relativa), o que aumenta bastante a vida útil dos produtos. Infelizmente, o produtor comum, que não dispõe dessa tecnologia toda, é obrigado a deixar sua colheita mal acondicionada em caixotes de madeira, e atravessadores a comercializam. É uma situação que sacrifica bastante o agricultor e ainda gera muitas perdas. É claro que não foi fácil chegarmos até aqui. Uma cadeia de supermercados é um cliente muito exigente em termos de volume, constância, qualidade, padrão, código de barras, pontualidadeetc., e os fornecedores que quiseram continuar conosco tiveram que se adaptar também. Sempre sofremos mais no verão, que é a pior época para a agricultura, pelo calor, chuva, granizo, há escassez e perdas; para nos resguardar, decidimos aumentar nossas áreas e administrá-las sozinhos. Hoje temos sete hectares de área cultivável e alugamos de propriedades vizinhas mais 20ha. O que é plantado nessa área do Sítio do Moinho representa 80% do volume de nossos produtos. Os 20% restantes nos são fornecidos por cerca de 18 agricultores da região. De toda a produção, de cerca de 3000 itens, 85% está destinada aos supermercados e os outros 15% são para os clientes domiciliares.
– Quando vocês iniciaram a produção de orgânicos, como o consumidor encarava estes produtos?
Ele ainda não acreditava que o produto orgânico tinha diferenças significativas em relação ao convencional, nem em sabor, nem para a saúde. Mas logo esta realidade foi mudando. Este fato foi sentido principalmente quando o Pão de Açúcar iniciou a comercialização de nossos orgânicos, em 1999. A partir desta data, foi acordado com o Zona Sul o fim da exclusividade.
– E como é o relacionamento hoje do Sítio do Moinho com os supermercados?
Angela Thompson – Estar em um supermercado significa atingir um público diversificado e de uma forma mais impessoal, bem diferente das entregas domiciliares, que são tradicionais para rodutores orgânicos. Mesmo assim, o consumidor final está muito exigente, por exemplo e especialmente quando compra bandejas seladas, já que não pode escolher. Não adianta colocar produto bonito por cima e de má qualidade por baixo. Para manter nossa imagem positiva, temos um acompanhamento dentro das lojas para tomar providências rápidas e transparentes. As negociações são minuciosas, pois como somos relativamente pequenos não temos “gordura” para retirar de nossos preços. Já tivemos que sair de uma certa cadeia de super mercados que nos cobraria taxas e descontos que chegavam a20%, e mesmo cobrando preço mais elevado para o consumidor. Por outro lado, se não tivéssemos feito um investimento tão pesado no começo, nem teríamos esta chance. Nossos produtos são perecíveis e todos os cuidados que já citei antes nos permitiram chegar com qualidade às prateleiras.
– Qual a estrutura dos agricultores que trabalham com o Sítio do Moinho?
Angela Thompson – Cada um tem uma área específica de tipo de produto para nos fornecer, mas sempre com a qualidade que exigimos. Contudo, alguns são tão pequenos que nós mesmos buscamos de caminhão a sua produção. Em termos legais, o Sítio do Moinho tem um contrato “guarda-chuva”, que permite a esses pequenos fornecedores, que não têm dinheiro para pagar os custos de certificação, de nos venderem sua produção, que será comercializada com nosso selo. Isto significa que não podem comercializar seus produtos separadamente. É claro que sempre temos permanente contato para verificar se eles continuam mantendo os requisitos necessários à produção orgânica. Por outro lado, fizemos ambém uma espécie de qualificação social com mais de 80% dos fornecedores, providenciando carteira de identidade, CPF, título de eleitor, conta em banco. Isto nos deu um prazer imenso, em vêlos ter uma cidadania completa, sem contar as famílias beneficiadas pelos empregos gerados.
– Como está o movimento orgânico no Brasil?
Angela Thompson – Os padrões atuais são internacionais e não reconhecidos pelo Ministério da Agricultura. O que existe é uma instrução normativa tramitando para que seja implementada uma legislação específica. Observamos hoje dois movimentos dentro dos orgânicos, de diferentes naturezas: um com a certificação feita através de inspetor, instituindo prazos e relatórios, com anuidades e visitas; e outro, principalmente na região sul do país, envolvendo associações de produtores, que tendem a não aceitar a inspeção de órgãos externos. Esses produtores geram um grande volume de orgânicos, estão presentes até na merenda escolar; mas não querem se submeter à inspeção de órgãos certificadores como o IBD, que seria um elemento independente da associação para atestar a padronização adequada dos produtos. É claro que não questionamos a idoneidade destes produtores, mas para um observador externo talvez isso trouxesse mais tranqüilidade na hora de comprar. As conseqüências são que não existem registros de rastreabilidade, condições para exportar ou mesmo de chegarem aos supermercados. Apesar deles acharem que a venda domiciliar é a ideal, eles têm um discurso politizado, que gera uma grande discussão entre essas vertentes.
– Para o consumidor leigo, quais são as diferenças entre orgânicos, hidropônicos e transgênicos?
Angela Thompson – São filosofias radicalmente diversas. Em linhas gerais: o hidropônico é produzido sem terra, em canaletas, recebendo nutrientes químicos. São praticamente clones, pois recebemos mesmos nutrientes que todos os outros vegetais da linha. Mas quando uma adoece, todos os outros também irão sofrer. Os transgênicos são plantas que podem receber genes não próprios com uma finalidade específica, alterando o produto final. Estas mentalidades” são totalmente diferentes às dos orgânicos. Produzidos no solo preparado sem aditivos químicos, cada planta é uma unidade independente, pois seu metabolismo não está
ligado aos das outras. Também não é permitido o uso de sementes transgênicas no plantio orgânico.
– Como vocês encaram a iniciativa do Cultivar Orgânico (programa que foi anunciado em setembro de 2003 pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro)?
Angela Thompson – Trata-se de uma linha de crédito de R$ 2 milhões, voltada para pequenos produtores, oferecendo empréstimos a uma taxa de juros de 2% ao ano. Achamos que é um bom começo, pois a taxa é convidativa, mas existem inconvenientes no estado do Rio de Janeiro,
que possui uma agricultura bem menos capitalizada do que a de São Paulo e Minas Gerais, por exemplo. Sem mencionarmos os custos de conversão – que são altos – e tradicionalmente a produção orgânica é feita por pequenos produtores.
– Com relação aos bovinos, a rastreabilidade já começa a se impor. Este sistema existe para o produto orgânico? Como ele funciona?
Angela Thompson – Sim, existe, e acreditamos que tenhamos sido os pioneiros neste sistema, seguindo as recomendações do IFOAM. Nossos fornecedores são cadastrados de maneira que podemos saber até mesmo de qual canteiro foi colhido um pé de alface ou a beringela que está embalada em determinada bandeja, que foram entregues ao Sítio do Moinho. Deste modo, se um consumidor levantar a hipótese de contaminação do produto, por exemplo, poderemos “refazer o caminho” e até proceder à análise de solo daquela plantação sob suspeita. As cargas dos produtores não são misturadas. Todo o processo de seleção, análise, embalagem, etc., é feito sob um número exclusivo do produtor e, inclusive, controlamos a qual filial do supermercado ou pessoa o produto será destinado.
– Quais são os insumos agrícolas utilizadas no plantio orgânico?
Angela Thompson – Nossa certificadora exige que o Sítio do Moinho se mantenha fiel à filosofia do cultivo orgânico, mas quando não existe oferta de certos insumos no país, é permitido que usemos substitutos, como as sementes convencionais, por exemplo. A partir destas são feitas mudas, que crescem em um substrato de composição ainda muito complexa para reproduzirmos no Sítio. Durante dois anos existiu um produtor de substrato orgânico na região, de quem passamos a comprar, mas há oito meses ele interrompeu suas atividades. Tivemos que nos comunicar com o IBD, que de novo nos mandará uma lista de fornecedores credenciados, como havia acontecido com este produtor. Assim, por enquanto, voltamos a depender do substrato não orgânico. Quando as mudas são retiradas das placas de isopor (divididas em células) e são transplantadas para a terra, não existe alternativa: o solo tem que estar despoluído, tratado para que todos os elementos nutricionais retirados pela planta sejam devolvidos ou estejam em equilíbrio com o meio ambiente.
– Como é feito o acondicionamento dos produtos?
Angela Thompson- Eles são retirados da terra e colocados em caixas plásticas, que permitem uma higienização e proteção do vegetal fresco. Para a embalagem, seria ideal que fosse biodegradável, mas no país simplesmente não há oferta. Existem iniciativas, como bandejas de fibra de mandioca, mas ainda estão passando por testes. No exterior o mercado é bem variado, com catálogos até de talheres. Mas se for feita a opção por uma embalagem muito cara, chega-se muito fácil de 10 a 30% do valor de venda de cada produto, encarecendo-o demais. Apesar de todos estes cuidados, não podemos colocar um preço muito acima do praticado para os legumes e verduras convencionais, pois não seremos competitivos na prateleira do supermercado.
– E quando o produto não atende aos padrões?
Angela Thompson – Fornecemos 1,2 toneladas diárias para os supermercados. Na seleção, descartamos verduras e legumes quebrados, com folhas mal-formadas, pequenos demais, etc. Assim, é gerado um refugo de 800 quilos, parte vai para o composto (picados e colocados no solo); destes, cerca de 200 quilos, são consumimos no próprio sítio, nossos empregados levam para casa e ainda fornecemos à Pastoral da Fome local, que sustenta cerca de 100 famílias carentes.
– O que vocês planejam para o futuro?
Angela Thompson – Temos sempre observado o mercado, cuja variedade na oferta de produtos certificados aumentou bastante em cinco anos. Aliado a isso, vemos que o consumidor tem ficado mais sensível à idéia de adquirir alimentos mais saudáveis, procurando por eles com maior frequência. Temos diversificado nossos produtos, oferencendo ao mercado também arroz branco e integral, açúcar mascavo, café, clorofila, feijões diversos, doce de leite, de abóbora e muitos outros. A agricultura orgânica já perdeu aquela visão de “exótica” há muito tempo. O mercado mundial é seríssimo, e o consumidor interno também vê o orgânico desta forma.
Por Jacira Collaço – Jornalista da SNA
Revista A Lavoura 647, dezembro de 2003
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